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Café quente e abraços gelados

Café quente e abraços gelados
Evandro Pastor
mai. 26 - 6 min de leitura
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Certa vez, voltando de uma consulta médica em SP - junto com minha mãe - resolvi dar uma passada na casa de um amigo, somente para dar um oi. Mal sabia o que iria acontecer:

- Alemão? Beleza? Cara, estou perto da sua casa e…

- (A onde você está?)  - os parênteses servem para indicar que esse diálogo foi em inglês.

- Estou no começo da rua aqui, nem cheguei perto do Starbucks.

- (Me espera ai que vou te encontrar.) - e desligou.

Fiquei meio sem entender, mas tudo bem.

Fui até a dita cafeteria com minha mãe. Estava bem movimentada até. Fiquei na fila por alguns minutos enquanto minha mãe procurava um lugar para se acomodar. Fiz meu pedido com uma moça novinha de sardas. Enquanto ela tirava meu pedido eu ficava tentando pensar o que raios estava acontecendo. O Alemão não agia daquela forma. Mas enfim, iria descobrir cedo ou tarde.

Nos acomodamos em uma mesa no fundo do lugar mas dava para ver a entrada. Passados alguns minutos eu via a figura desse meu amigo, o Alemão. Sim, ele é um alemão legítimo. Saiu da Alemanha, morou nos EUA. Casou com uma brasileira e veio morar nesse fim de mundo. Ele foi se aproximando da mesa com cara de poucos amigos:

- E aí Alemão, como você está cara!?

- (E ai cara? Tudo bem?) - foi um cumprimento de gelar a alma.

Nesse meio tempo, minha mãe, sempre toda doce. Cumprimentou o Alemão.

- O Evandro fala muito de você! Tudo bem?

- Muito prazer mamãe Do Mango. - Disse ele em português com um sotaque bem carregado, um pouco mais cordial, mas ainda sim mais gelado do que o de costume.

- (Cara, você TEM QUE ME AVISAR COM ANTECEDÊNCIA antes de vir me visitar.) - disse ele.

- (Desculpe, não sabia que você estaria ocupado, da próxima vez vou avisar. Não sabia que estava ocupado.) - Disse eu em inglês.

- (Não estava ocupado, só gosto de estar preparado para receber visitas.) - Disse ele.

Nem precisa dizer que minha mãe, mesmo dialogando em inglês, sentiu que tinha algo muito errado. Porém, por incrível que pareça, o Alemão relaxou depois dessas breves palavras. Ficou mais sociável, conversou com minha mãe e tudo.

Depois de alguns minutos conversando, ele se levantou, cumprimentou minha mãe calorosamente e me deu um abraço  ( gelado, muito gelado):

- (Da próxima vez me avisa um dia antes pelo menos!)

Com certeza você deve estar achando que ele foi extremamente grosso conosco, certo? Posso afirmar que não. Para provar isso vou contar um caso muito rápido:

Em um de nossos papos regado a cerveja e jogo de video-game eu ensinei a ele um termo: “pinta de verde e joga no mato”. O termo se refere ao que fazer quando uma coisa não funciona, que está quebrada ou não combina com a situação.

- (Cara! Muito boa essa, vou usar qualquer dia destes.) - disse ele.

Nem nos meus sonhos mais malucos eu conseguiria imaginar que esse cara faria isso. Ele e a esposa iriam sair com alguns amigos para um jantar e foram encontrar esse casal de amigos na casa deles. A casa era um sobrado classudo em um bairro nobre. Enquanto ele, sua esposa e o anfitrião estavam conversando na sala, eles ouviram passos da dona da casa descendo as escadas. A dona da casa parou no meio da escada, fez uma pose de modelo e perguntou a todos os presentes.

- O que acharam do meu vestido?

- Pinta de verde e joga no mato! - Disse o Alemão.

A esposa do Alemão não sabia onde enfiar a cara, mas muito esperta disse:

- Não liga pro Alemão, ele fala muita besteira.

Mas não adiantou muito,  mulher foi trocar o vestido. Dizia ele contando a história pra mim as gargalhadas.

- Você é doido cara??? - disse eu

- (Cara, ela perguntou e eu respondi. O vestido era feio pra p…) - respondeu ele.

Inacreditável. O cara é doido, certo? Não. Fui entender isso somente meses depois.

Em um dos nossos papos sobre a vida, o universo e tudo o mais ele disse:

- ( Cara temos que ser íntegros, principalmente com a gente mesmo, a integridade é como um barco. Se rachar você afunda.)

Nesse momento eu entendi por que raios ele se comportava daquela forma. A ideia é manter sua opinião independente da aprovação dos outros. Investigando mais a respeito, descobri que a cultura alemã é fria. Não é como a nossa, que temos “dedos” para tratar de assuntos que podem deixar nosso ouvinte desconfortável. O Brasileiro quer ser político, não sabe dizer não, mesmo que isso possa te prejudicar no futuro. Somos adeptos do “talvez” do “quem sabe e do “vou pensar e te dou um retorno”.

Entenda, isso é muito diferente de ser grosseiro ou mal educado. É ser factual. E ser factual é uma arte que precisa de aprimoramento.

Antes de escrever este texto que você está lendo, pensei muito sobre estas - e muitas outras - experiências como esta. E foram incontáveis vezes que entrei em furadas pois fui político ao invés de ser factual. Faça uma análise: quantas vezes você se preocupou com o o que o outro pensava de você em uma conversa, em uma reunião, em uma discussão ao invés de se preocupar com o que você sente - aquilo que te mantém íntegro.

Por isso, seja íntegro com você e aplique esse princípio do barco no seu projeto, podcast, vídeo, texto, produtos, não importa. Seja você e coloque um pouco de você em tudo o que você fizer - e não coloque aquilo que você acha que vai dar ROI - , pois as vezes um abraço gelado também pode ser uma forma de afeto.

Ao Alemão, obrigado por nossos papos e pelas lições de vida. 


 


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